Blu-ray: isso é de comer?

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Nham, nham!

Estamos em 2011. Já se passaram 5 anos desde o lançamento do Blu-ray e 3 anos desde que o formato venceu o HD-DVD na disputa pela hegemonia do mercado. E ainda assim parece que o público em geral e a imprensa não-especializada não compreende corretamente o que o Blu-ray é, tampouco conseguem absorver conceitos como filmes antigos em alta definição, aspectos de tela e granulação. O objetivo deste artigo será o de tentar esclarecer algumas dessas ideias, utilizando como ponto de partida a seguinte pérola do jornalismo online.

No dia 28 de julho deste ano, o jornalista Ricardo Feltrin escreveu uma nota a respeito da qualidade dos Blu-rays nacionais em sua coluna na Folha de São Paulo. Pulando as notas sobre novelas, Xuxa e similares, lemos o seguinte:

Blu-ray com qualidade VHS não dá
Nas próximas semanas os estúdios e gravadoras nacionais deverão ser notificados por órgãos de defesa do consumidor. O motivo: uma prática de alguns estúdios, de vender filmes, shows e seriados em caixas com o selo blu-ray, quando a qualidade desses títulos é uma porcaria, ou em nada superior à dos DVDs comuns.

Pagar o dobro por nada
Acontece que isso vem ocorrendo em relançamentos de grandes clássicos (como “E o Vento Levou”) ou shows antigos (Dire Straits, Police, Iron Maiden etc). Acontece que nada disso é blu-ray e o consumidor está sendo lesado há pelo menos três anos. Nenhum relançamento que está nas prateleiras, anunciado como DVD Blu-ray, foi gravado originalmente em qualidade de 1280 pixels –a qualidade real do blu-ray. Ou seja, o consumidor compra blu-ray seu filme ou banda preferidos, põe no aparelho descobre que vai assistir tudo exatamente com a mesma qualidade de DVD comum, e ainda com duas torres pretas no vídeo, uma em cada lado da tela. Só que ele paga até 4 vezes mais por essa cópia tosca em blu-ray, do que pagaria se comprasse um DVD comum.

Ação contra o abuso
A ONG Pro Teste deve entrar esta semana com pedido de análise do material que está nas prateleiras das lojas. O órgão deve exigir que os estúdios coloquem um aviso na capa desses blu-rays, informando que esses DVDs não tem qualidade full HD. Uma decisão mais sábia que o consumidor deve tomar é sempre olhar no verso da caixa do dvd blu-ray qual é a “definição da gravação”: se não estiver escrito 1280 x 720, esqueça. Compre um DVD comum mesmo que a qualidade será absolutamente igual ao do pseudoblu-ray.

A princípio, pensamos que o colunista está se referindo a coisas como esta. Porém, ao analisarmos melhor o texto, descobrimos que o autor deveria estar melhor assessorado. Vejamos:

Acontece que nada disso é blu-ray e o consumidor está sendo lesado há pelo menos três anos. Nenhum relançamento que está nas prateleiras (…) foi gravado originalmente em qualidade de 1280 pixels –a qualidade real do blu-ray.

Alto lá! Primeiro, vamos entender uma coisa. A antiguidade do material não impossibilita o lançamento deste em Blu-ray com uma qualidade insuperável. Todos os filmes, boa parte dos espetáculos musicais e algumas séries mais antigas foram registradas em película. A película, sendo um meio não-digital, não possui uma resolução nativa, ao contrário do vídeo digital ou de mídias magnéticas como o VT utilizado em televisão. Um quadro em filme 35mm, dependendo da qualidade da película, pode equivaler a uma resolução de 3 a 12 milhões de pixels¹, enquanto a resolução máxima permitida no Blu-ray é de pouco mais de 2 milhões de pixels. Com esta informação em mente, fica fácil compreender que é sim possível converter shows e filmes antigos para vídeo digital de alta definição, desde que a origem do material seja película.

Esta conversão é feita da seguinte maneira: o negativo original é colocado em um aparelho chamado motion picture film scanner, onde os fotogramas são escaneados em altíssimas resoluções como 2K (~ 2048 × 1556 pixels), 4K (~ 4096 × 3112 pixels) ou 8K (~ 8192 × 4320 pixels) e salvos em formato digital. Vejam no vídeo abaixo um equipamento deste tipo em operação:

Já podemos perceber que a resolução do material bruto vai muito além dos 1920 x 1080 pixels do FullHD (e não “1280 pixels”, Sr. Feltrin, prestenção!), não havendo então nenhum impedimento em se transpor material antigo para o formato novo. Se houver restauração no negativo, podemos inclusive ter uma imagem muito mais próxima do que foi originalmente fotografado no momento da feitura do filme.

Se o leitor ainda tem dúvidas que filmes antigos podem ficar fabulosos em Blu-ray, vejam essas capturas feitas pelo site Blu-ray.com. Vale lembrar que a qualidade real da imagem é ainda maior, pois as capturas possuem perdas (cliquem nas imagens para ampliar):

A Malvada (1950)

007 contra Goldfinger (1964)

Taxi Driver (1976)

Blade Runner (1982)

Vale até fazer um aparte. A película de filme é formada por grãos de sais de prata, sendo a imagem resultado da concentração desses sais. Dependendo do formato da película ou da qualidade desta, os grãos podem ser maiores ou menores. Como já vimos, cada fotograma do filme é escaneado e salvo em um formato digital de altíssima definição, fazendo com que a imagem resultante torne tudo muito nítido, inclusive os grãos. Portanto, antes de reclamar que “a transferência do filme x é muito ruim, pois está granulada demais”, entenda que isto pode ser uma característica da película original, e não um defeito.

Saiamos agora desta pequena digressão e continuemos a analisar a nota (grifo meu):

(…) o consumidor compra blu-ray seu filme ou banda preferidos, põe no aparelho descobre que vai assistir tudo exatamente com a mesma qualidade de DVD comum, e ainda com duas torres pretas no vídeo, uma em cada lado da tela.

Mais absurdos! Torres pretas uma em cada lado da tela? Suponho que o colunista se queixa então de barras verticais, mas não entende que as barras existem por um motivo: preservar o aspecto original do filme.

Os televisores não são como uma tela de cinema, onde você consegue projetar imagens em qualquer aspecto. Tanto as TVs antigas quanto as modernas plasma e LCD widescreen possuem um aspecto fixo na tela: 4 x 3 nas antigas, 16 x 9 nas wide. Isso significa que tais aparelhos só conseguem exibir imagens sem nenhum tipo de barra preta quando elas são em 1.33 (nas antigas) e 1.78 (nas modernas). Imagens em quaisquer outros aspectos necessariamente necessitarão de barras para que se ajustem à tela da televisão. Como estamos falando em Blu-ray, utilizarei como parâmetro as TVs modernas em widescreen 16 x 9, que são as adequadas para a apreciação correta da tecnologia.

Filmes mais antigos (anteriores a 1950) eram originalmente fotografados em 1.33 (caso d’A Malvada da captura); outros filmes (da década de 1960, notadamente) foram filmados em aspectos widescreen como 1.66 (como o Goldfinger da captura acima). Tanto um quanto outro, quando exibidos em uma TV widescreen moderna, receberão barras pretas verticais nas laterais da imagem para evitar que esta fique deformada.

Da mesma forma, filmes widescreen em aspectos como 1.85 (caso de Taxi Driver, capturado acima) ou 2.35 (caso do filme Blade Runner mostrado anteriormente) receberão barras pretas horizontais também com o intuito de manter o aspecto correto da imagem sem deformações nem cortes, respeitando a forma que a obra foi filmada e não interferindo na composição da cena conforme foi concebida pelo seu diretor.

De qualquer forma, tais queixas são infundadas. Primeiro, porque as barras não implicam em perda de qualidade de imagem, já que elas são geradas pelo player e não são parte da imagem original (uma vez que não vi até hoje nenhum lançamento em widescreen não-anamórfico em Blu-ray); segundo, as edições em DVD também apresentarão barras pretas caso o filme exija, pois esta questão não é exclusividade do Blu-ray, tampouco existe por conta do formato.

Prossigamos em nossa análise:

A ONG Pro Teste deve entrar esta semana com pedido de análise do material que está nas prateleiras das lojas.

Entrei em contato com a Pro Teste, mas não obtive nenhum retorno a respeito deste assunto. No entanto, se eles realmente tomarem esta atitude baseados nas informações fornecidas pelo colunista da Folha, cometerão um erro crasso que pode ser evitado com uma consulta rápida a qualquer pessoa com um pouco mais de conhecimento sobre mídias óptico-digitais. Continuemos:

O órgão deve exigir que os estúdios coloquem um aviso na capa desses Blu-rays, informando que esses DVDs não tem qualidade full HD. (…) sempre olhar no verso da caixa do dvd blu-ray qual é a “definição da gravação”: se não estiver escrito 1280 x 720, esqueça.

Inacreditável. O sujeito misturou completamente as estações! Primeiro, o óbvio: DVDs não são Blu-ray, nem são FullHD. Se o colunista quis mencionar a mídia, deve chamá-la de Blu-ray Disc ou então, abreviadamente, de BD.

Escrever “DVD Blu-ray”, “DVD FullHD” ou “DVD de alta definição” incorre em um oximoro, denota desconhecimento por parte do autor e propaga a desinformação para o público. DVDs são mídias standard definition (SD) e pela própria definição do formato armazenam imagens apenas em 480i (NTSC) ou 576i (PAL). Somente formatos como o Blu-ray são capazes de suportar conteúdo em HD (720p) ou FullHD (1080p).

Segundo, os 1280 x 720 que o colunista entende por FullHD não é FullHD. Esta resolução equivale a 720p, que é apenas High Definition (HD). Até hoje, nenhum título lançado em Blu-ray utiliza esta definição em seu programa principal; no máximo, se acham títulos autorados em 1080i. Portanto, se forem recolher todos os BDs que não apresentem conteúdo em 1280 x 720, é mais fácil proibir o formato Blu-ray no Brasil. Não, não é pra fazer isso! Foi só para mostrar o absurdo do pensamento desenvolvido pelo colunista.

Pior que isso não acaba aqui. O usuário henriquefd do HT Fórum comunicou (com razão) as barbaridades do colunista Ricardo Feltrin para o “Erramos” da Folha. Ao invés de corrigir os erros, a Folha os ratificaram em resposta recebida por este usuário. Os absurdos são tantos que precisam ser comentados à parte. Leiamos então (a formatação e os grifos são meus):

“Prezado Henrique,

Agradecemos seu contato. O DVD 1080 é uma das categorias dentro da alta definição, mas hoje não pode ser chamada de fato de blu-ray, pois uma gravação em 1080 transposta para o blu-ray não consegue ter a absoluta alta definição, inclusive de área. É isso que geralmente dá origem às duas torres pretas, uma em cada lado do vídeo, mencionadas no texto.

Tanto que para gravar ou assistir algo em 1080p alta definição, você nem precisa de blu-ray, o DVD comum já faz isso.

Um DVD “blu-ray” 1080 é capaz de armazenar até 4 horas de filmes em 1080p Full HD. No entanto hoje só se vê DVDs blu-ray com um único filme de 1280.

Só o 1280 preenche requisitos para ser chamado de blu-ray, embora já haja empresas trabalhando com 1900p e até mais. A propósito, em breve essas altas definições já não serão mais possíveis de distinguir ou fazer diferença ao olho humano.

Agradecemos pela audiência e colaboração!

Atenciosamente,

Equipe Folha.com”

Olha, o nível dos jornalistas está muito, mas muito baixo mesmo! Para não tomar muito o tempo do leitor e não me repetir em excesso, vou apenas listar erros cometidos nesta resposta:

  1. DVD 1080 não existe;
  2. Fontes HD são mantidas em alta definição ao serem transferidas para Blu-ray;
  3. As barras pretas não têm nada a ver com definição de imagem;
  4. DVD não é capaz de armazenar conteúdo FullHD;
  5. DVD “blu-ray” 1080 não existe;
  6. Jornalista que se preze não deve utilizar a Wikipédia como referência, especialmente a versão em português;
  7. E se for indicar uma referência, é bom lê-la, especialmente se ela contradizer o texto;
  8. Filmes em Blu-ray não são em 1280 x 720, mas sim em 1920 x 1080;
  9. DVD Blu-ray não existe;
  10. 1280 x 720 não é requisito para FullHD;
  11. Para preencher os requisitos para ser chamado de Blu-ray, basta estar gravado em uma mídia Blu-ray;
  12. Resoluções acima de 1080p não são o escopo da coluna, nem o motivo da queixa do leitor;
  13. O mesmo vale para a questão de serem ou não distinguíveis pela visão.

Depois de tantas baboseiras, fica difícil tecer mais comentários. Tanto a coluna quanto a resposta falam por si sós e retratam o tipo de gente que produz conteúdo nas interwebs atualmente.

Sei que o leitor do BJC, que é mais informado que a média, deve ter se aborrecido com mais um artigo batendo nas mesmas teclas. Peço paciência a vocês, mas acho que é nosso dever continuar insistindo nesses pontos, até que toda a desinformação a respeito de Blu-ray, alta definição, widescreen, mutilação e assuntos relacionados se dissipe.

Infelizmente, quem deveria dar o exemplo é quem mais derrapa. Não há demérito algum em não conhecer um determinado tema; afinal, não é possível para uma pessoa conhecer absolutamente tudo sobre todos os assuntos. Mas é imperativo que o jornalista se proponha a pesquisar a respeito de qualquer assunto que não domine, preferencialmente utilizando fontes confiáveis. Se isso não for possível, que este consulte um especialista antes de elaborar seu texto, justamente para dirimir todas as dúvidas que porventura tenha. Se tudo isto for feito, mas mesmo assim o jornalista passar alguma informação incorreta, basta pesquisar mais a fundo e informar o leitor do erro cometido.

Estou pedindo muito, caro leitor? Não, estou apenas exigindo o básico que um jornalista já deveria saber durante sua formação. Entretanto, o fato descrito neste artigo demonstrou que o que ocorreu foi exatamente o oposto.

Ao escreverem sobre um assunto que não dominam, baseados apenas em suposições, sem pesquisar ou consultar quem realmente entende do assunto, cometendo gafes inaceitáveis na elaboração do texto e não tendo humildade para reconhecer os próprios erros, o colunista Ricardo Feltrin e os “jornalistas” da Equipe Folha.com tão somente disseminaram a desinformação entre seus leitores, reforçaram a desconfiança daqueles que não fazem ideia do que o Blu-ray é e colaboraram para aumentar mais um pouco a profundidade do fosso em que jornalismo online brasileiro se encontra.

Aprendam com este erro, senhores! Para que vocês não passem aos seus leitores a impressão que Blu-ray é algo de comer, já passou da hora de buscarem conhecimento a respeito deste tema. As informações estão à disposição de todos, basta fazer um esforço e ir atrás. Porque se for para continuar a escrever bobagens do naipe mostrado neste texto, melhor focar apenas nas fofocas dos “artistas” e deixar o resto para quem entende do riscado.

Isso não é de comer, menino!

ATUALIZADO [3/8 – 19:30]

Folha publica errata sobre a coluna citada neste artigo:

ATUALIZADO [4/8 – 17:50]

Em sua nova coluna, Ricardo Feltrin assume (com bom humor) o erro citado neste artigo.

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